Modelos Narrativos de Entrevista de Casal: reunião ou separação
Nina Vasconcelos Guimarães
Resumo
O artigo propõe dois modelos de entrevista de casal embasadas na abordagem narrativa de Michael White e David Epston. A primeira delas de minha autoria, ressaltando momentos extraordinários de cenas preferidas do casal onde as competências deles no relacionamento eram notórias e, desta forma, possibilitam um resgate do relacionamento ou uma separação mais digna, e a segunda entrevista, do autor renomado canadense, Stephen Madigan, mais voltada para a restauração da memória dos valores e da ética do relacionamento do casal, permitindo que eles possam se conectar com este acervo para construir um futuro imaginário que os possibilite lidar com o exercício parental e os desafios de uma vida separada.
Palavras-chave: casal, narrativa, separação, cena preferida, futuro imaginário.
Introdução
Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver,
acrescentariam nova luminosidade às estrelas,
nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens.
Fernando Pessoa
Ao me deparar com as práticas narrativas e as possibilidades criativas de intervenção que elas nos favorece comecei a pensar em um modelo de entrevista de casal que se sustentasse na premissa narrativa de privilegiarmos os recursos positivos e as competências de nossos clientes, sem nos determos as histórias saturadas de déficits que normalmente “roubam a cena” do setting, nos enredando em uma história obstruída do casal que aponta apenas em direção aos prejuízos relacionados ao mau funcionamento conjugal.
Refleti sobre qual seria o impacto no casal de ser convidado a falar de momentos construtivos que vivenciaram juntos, ao invés de escutá-los a partir da história de sofrimento que eles trariam, uma história desiludida e desesperançosa, que retrata apenas parte do que eles se tornaram, já que nossas histórias compilam apenas um recorte de nossas experiências vividas, nunca condensando a riqueza que elas possuem. Ao escutá-los sob uma ótica mais apreciativa do funcionamento relacional, e ao resgatar os recursos e as competências deles, percebi que a tensão provocada pela memória do sofrimento paulatinamente se diluía, abrindo espaço para os cônjuges repensarem à relação, resgatando o casamento ou decidindo pela separação, onde, em ambos os casos, é notória a diferença com que eles lidam com estas definições - menos pautados em mágoas e desilusões e mais conectados à dignidade da história positiva do relacionamento.
Curiosamente, dois anos se passaram sem que eu publicasse o meu Modelo Narrativo de Primeira Entrevista, até que me deparasse com um curso de abordagem narrativa para casais com o professor canadense Stephen Madigan, que nos apresentou a Entrevista Relacional para casais, uma proposta irreverente de entrevistar o relacionamento, deixando de lado a escuta habitual de duas individualidades. Éramos habituados a entrar em uma terapia de casal para falarmos do relacionamento histórico contextual, de focarmos nas narrativas individuais das famílias de origem de cada um e de como os vínculos eram vivenciados dentro deste contexto primário. Ao recuperarmos este acervo do passado encontrávamos as explicações para o conflito dentro da relação.
Adentrávamos na memória do sofrimento, e o que tentávamos fazer frequentemente, era buscar os déficits relacionais das famílias de origem, dos vínculos estabelecidos, como uma maneira de explicar, por exemplo, os problemas de comunicação e de outras ordens. A razão pela qual focávamos na memória do sofrimento sustentava-se na ideia de retornar no tempo e “consertar” o problema que resultava em uma disfunção familiar. Buscávamos uma causa para o conflito, uma forma de explicá-lo, acreditando que, ao encontrarmos a causa, chegaríamos à cura.
A mudança de perspectiva proposta por Stephen Madigan foi a de passar a entrevistar a relação e, desta forma, proporcionar ao casal sair de suas individualidades e se conectarem àquilo que no passado favoreceu que eles colaborassem para a construção de um relacionamento digno e satisfatório. Recuperar essa memória positiva de quem eles puderam ser em tempos remotos propiciou uma guinada na forma de fazer terapia, e nos possíveis acordos contemplados por este tipo de entrevista relacional que permitem aos cônjuges negociarem sobre pensão, guarda dos filhos, visitação e demais particularidades vivenciadas em uma separação (MADIGAN, 2018).
Ambos os modelos de entrevista apresentados neste artigo se sustentam na premissa narrativa de elevar as competências no setting, em detrimento de permanecer focado na história de déficits. Em nenhuma das duas, o terapeuta define o “destino” do casal, ou seja, não prioriza nem a separação e nem a reunião. Porém, a proposta de Madigan (2018) nos foi apresentada como recurso para intervenção com casais separados ou em processo de separação, muitas vezes ocorrendo em meio a processos jurídicos relativos a necessidade de concretizar acordos, mesmo que em alguns casos tenha havido o interesse por parte dos mesmos de retomarem o relacionamento para mais uma tentativa. O modelo proposto por mim também se aplica a casais em crise, tanto àqueles que seguirão em direção a uma separação, quanto àqueles que buscam auxílio para perpetuarem o relacionamento.
Portanto, estaremos diante de dois modelos de entrevista conjugal, o Modelo Narrativo de Primeira Entrevista, proposto por mim, e a Entrevista Relacional, proposta por Stephen Madigan, que se constituem dentro da abordagem narrativa e, desta maneira, merecem ser introduzidos por uma plataforma de seus principais conceitos no intuito de serem melhor compreendidos.
Plataforma Narrativa: conversações esperançosas e otimistas em direção a um futuro promissor
O mundo é mágico.
As pessoas não morrem, ficam encantadas
Guimarães Rosa
A Terapia Narrativa é constituída por um conjunto de práticas terapêuticas advindas de bases teóricas distintas compartilhadas por Michael White e David Epston nos anos 80. Michael White, um dos narrativos mais renomados da área, pode ser considerado um verdadeiro antropólogo terapêutico, que transitou por diferentes áreas de conhecimento e dialogou com diversos interlocutores com os quais se identificava: Gregory Bateson, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jerome Bruner, Lev Vygotsky e Barbara Myerhoff. As ideias, as ideologias e os conceitos por ele desenvolvidos resultaram em uma “bagagem” sólida teórico-prática e em um modelo original de práticas terapêuticas individuais, familiares e comunitárias.
Desejoso de expandir sua compreensão para além dos limites de sua profissão, White envolveu-se na teoria feminista, na teoria literária, na antropologia cultural e na teoria crítica, o que lhe propiciou construir metáforas compatíveis a uma nova forma de se pensar a prática terapêutica (GRANDESSO, 2000). Desde a década de 70, ele demonstrava interesse especial pela filosofia da ciência, no que tange as revoluções científicas e as transformações radicais que elas provocam nos sistemas sociais, permitindo que um paradigma fosse abandonado e substituído por outro (WHITE, 1995).
Focou sua atenção na forma como as pessoas organizam sua vida em torno dos significados que atribuem à experiência. Esses significados influenciam a vida das pessoas, a permanência do problema e a forma como elas sentem, pensam e agem. Suas relações e a maneira com que enxergam suas identidades, depende diretamente dos significados que se auto-atribuem (GRANDESSO, 2000; GUIMARÃES, GALVÃO, 2014).
Sua interlocução com Bateson o fez desconsiderar o conhecimento objetivo da realidade e passar a adotar o princípio de que todo conhecimento é um ato de interpretação (WHITE, EPSTON, 1990). Para estes autores, ao contarmos nossas experiências acabamos por atribuir-lhes significados, podendo a vida ser considerada como uma constelação de relatos e os seres humanos como seres interpretantes. Tal como nos afirma Grandesso (2005),
os significados que são atribuídos aos acontecimentos da vida, construídos continuamente ao longo da existência, decorrem dos mapas de mundo que a própria pessoa elabora. A forma como um acontecimento encaixa-se nos mapas de mundo - ou seja, nas pautas já conhecidas pela pessoa no contexto da experiência vivida - determina a sua compreensão (p. 06).
O desdobramento de conceitos Batesonianos proporcionou a White considerar que os problemas não se localizam nem na pessoa (caráter intrapessoal do problema), nem na família (caráter interpessoal). Eles são construídos em separado das pessoas e das famílias, constituindo-se em entidades únicas que as influenciam. O efeito desta consideração sobre o problema é que ele deixa de ser visto como parte constituinte intrínseca da vida das pessoas, bem como de que elas podem, inclusive, se unir contra ele, ao invés de serem isoladas em categorias diagnósticas que as patologizam (GUIMARÃES, 2007).
Para White e Epston (1990), a vida das pessoas é multi-historiada por uma história dominante/oficial que apresenta parte das experiências vividas que acabam por qualificar e constituir o sujeito, e por uma história subordinada/secundária, formada por uma variedade de narrativas alternativas, que incluem as experiências negligenciadas pela história dominante. A busca da história subordinada alternativa, através das práticas narrativas, permite ao sujeito adentrar em outros territórios de sua identidade, explorando recursos, habilidades e capacidades, até então, ocultas e adormecidas (WHITE, 2007; GRANDESSO, 2008).
Movido pelo interesse de recuperar no cliente uma versão mais otimista dele mesmo, White desenvolveu um mapa de re-autoria baseado na ideia de que nossa identidade não pode ser representada por uma única história pois somos seres multi-historiados. Considerando o fato de que as histórias não são totalizantes, há sempre espaço para contradições e inconsistências que permitem ao terapeuta escavar novas histórias que contradigam a versão dominante (GUIMARÃES, 2007; GRANDESSO, 2008; MADIGAN, 2011). A prática narrativa de re-autoria dá margem para o terapeuta garimpar o elemento que destoa da versão dominante denominado acontecimento extraordinário.
A partir de uma exploração detalhada de um acontecimento que, a priori, estava esquecido e parecia insignificante, mas que, com a investigação, torna-se “luminoso” e “significativo”, o terapeuta o associa a outros eventos para que, dessa união, surja uma história preferida. Se o acontecimento extraordinário permanecer isolado e desconectado de outras histórias, não encontra a força necessária para que dessa conexão surja uma história mais densificada e represente a força de transformação de uma história alternativa (PAYNE, 2002; GUIMARÃES, 2007; PALMA, 2008).
Pensando nessas histórias subordinadas e atendendo às premissas do não dito na vida das pessoas, White e Epston (1990) recorreram ao filósofo francês, Jacques Derrida, que propõe uma nova reflexão sobre a maneira da linguagem operar. Questionando os valores de verdade, de significado inequívoco e de presença, o conceito de desconstrução de Derrida aponta para a possibilidade de escrever não mais como representação de algo, mas como a infinitude do seu próprio “jogo”. Nesse sentido, o autor se abstém da busca por qualquer significado através ou dentro do texto, já que o considera impossível de ser fixado e cada escolha, então, pressupõe um estado de indecisão anterior. Segundo Lax (1998), “Derrida propõe que existe aquilo que é dito e o que não é dito, e a tensão entre os dois é a différence” (p. 91). Uma nova compreensão surge dessa tensão. No interjogo do dito e do não dito, daquilo que está presente e do que não se apresenta, existe um potencial para uma nova perspectiva, pois nenhum deles adquire valor de objeto de realidade – ambos são, portanto, uma construção particular da leitura que o leitor faz do texto. Segundo o filósofo, devemos sempre buscar essa outra posição, ao mesmo tempo que desconstruímos o mundo como estamos habituados a conhecê-lo, procurando pelo inesperado que substitua essa visão.
Assim, o terapeuta narrativo busca por significados ocultos naquilo que é dito, que provavelmente não encontram espaço de existência na versão dominante de vida do cliente, pois ele acredita que todo dito remete a um não dito (GRANDESSO, 2001; 2007). Transpondo as ideias de Derrida para as práticas narrativas, Michael White (2007) afirma que “[...] para expressar uma experiência da vida, as pessoas devem distinguir essa experiência de outras experiências contrastantes que a circundam” (p. 210). Desta forma, quando uma pessoa expressa desilusão, provavelmente este significado por ela atribuído foi construído a partir de um significado que o contraste, a ilusão. Quando por ventura o sujeito se define como destemido, podemos considerar este significado associado a um outro, o de temor.
Portanto, nosso papel terapêutico consiste em manter uma curiosidade sobre as narrativas que nos são apresentadas e estabelecer uma escuta para além do que está sendo dito, que nos propicie escavar experiências que foram ocultadas no tempo, permitindo que um recorte de realidade passasse a definir a vida e a identidade de nossos clientes. Em terapia, as histórias evocadas em nossas conversações representam um acervo distinto da versão obtusa que nos foi narrada. As lacunas sobre as quais adentramos com nossa curiosidade se transformam em oportunidades de novos mundos possíveis na vida de nossos clientes.
O Modelo Narrativo de Primeira Entrevista
Sou como você me vê.
Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania,
Depende de quando e como você me vê passar.
Clarisse Linspector
Desde que me deparei com as extraordinárias práticas narrativas de Michael White e David Epston (1990) fui instigada a acionar minha criatividade em prol da construção de um modelo de primeira entrevista para casais que contemplasse uma releitura da célebre primeira entrevista de Jay Harley (1979), adaptada às premissas narrativas de enaltecimento das competências em detrimento dos déficits - o Modelo Narrativo de Primeira Entrevista.
Em um primeiro contato com a família ou o casal, é importante que o terapeuta estabeleça um clima confortável e acolhedor com aqueles que o procuram para que, desde muito precocemente na sessão, essas pessoas possam ser surpreendidas. Entenda-se, aqui, o adjetivo surpreendidas como um convite ao bem-estar, ao contrário do que as pessoas imaginam sentir-se num primeiro encontro com o terapeuta. O impacto da surpresa deve-se ao fato de que, antes do primeiro encontro, geralmente eles construíram uma versão “obtusa” de relato sobre suas vidas baseada, principalmente, em um pessimismo que os aprisiona à história dominante que os trouxeram à terapia, reduzindo-os ao problema que estão vivendo, deixando de considerar qualquer outra versão que possibilite histórias alternativas e mais promissoras de suas existências. As primeiras histórias narradas em terapia estão cheias de desespero, de frustração, de dor e sem qualquer “sumo” de esperança (PAYNE, 2002). Ao convidarmos os novos consultantes a uma condição de bem-estar, damos espaço a que emerja um contexto favorável à construção de histórias mais esperançosas.
Desde a proposta estratégica de primeira entrevista de Jay Haley (1979), adotada por muito tempo como o grande modelo a ser seguido, este encontro se iniciava com a denominada fase social pela qual, mais importante do que conhecer os problemas, devíamos nos ater às pessoas, o que elas fazem, onde e com quem moram, quais atividades desempenham, com que satisfação as realizam, etc. Quanto mais rica e densa fosse esta primeira exploração sobre a vida dessas pessoas, mais elementos extraíamos para lidar com as investigações posteriores.
Ao iniciarmos uma primeira entrevista, o casal ou família espera poder falar de como eles se vêem ou têm se comportado recentemente, expondo uma apresentação cheia de críticas, insatisfações e adentrando, sem ressalvas, nos dilemas que os envolve. Numa proposta narrativa de primeira entrevista, o foco é dirigido para uma apresentação que se contraponha à versão dominante de como cada membro tem se visto atualmente, de como têm se definido de uma maneira restrita, empobrecida e adoecida. O terapeuta investe na solicitação de quem eles foram em um passado remoto ou distante, na tentativa de que esta descrição apresente elementos extraordinários, ou seja, aspectos amortecidos do outro que não têm aparecido ultimamente e que eram muito apreciados no passado. Diante desta surpresa, o terapeuta desloca os clientes para uma fase da vida deles permeada por satisfações que justificam a escolha que fizeram em permanecer juntos, destoando dos propósitos que os levou a buscar terapia.
Esta proposta de primeira entrevista narrativa favorece que a família ou o casal experimente uma “quebra” de estrutura daquilo que “armaram” para contar em um primeiro encontro da terapia. Geralmente eles chegam preparados para expôr uma história limitada, saturada e desesperançosa, baseada no dilema que estão vivendo. Mas, ao contrário do esperado, sendo surpreendidos pelo terapeuta, são convidados a explorar um terreno novo, há muito tempo esquecido – “quem eles eram, uns para os outros, há tempos atrás, quando decidiram ficar juntos ou ainda funcionavam bem”.
O terapeuta lhes solicita uma “cena” que possa ilustrar com luminosidade sobre quem eram, quais ações foram mais emblemáticas para compor um convívio satisfatório em uma relação proveitosa. Não é somente o casal ou a família quem se ilumina com esta cena extraordinária, mas também o próprio terapeuta. A descrição saturada do problema tem a capacidade de obscurecer as memórias de quem fomos antes da instalação e cronificação da crise, e relembrar uma cena preferida traz de volta uma identidade relacional perdida no tempo, identificada muito provavelmente como irremediável.
Geralmente a novidade que se apresenta, a requisição de que eles se remetam ao passado, a um momento distante e diferente do atual conflituoso, é acompanhado com perplexidade pelos clientes, o que torna necessário que o terapeuta especifique sua proposta por exemplo, com frases do tipo: “Quando vocês se elegeram para ficar juntos, o que mais lhe chamou atenção nela(e)? Que característica dela(e) ficaram mais evidentes e influenciaram para que permanecessem juntos? Se cada um concorda com a descrição feita pelo outro, se querem acrescentar algo, o quanto essa descrição do outro se aproxima ou está distante de como a própria pessoa se vê, etc. Os detalhes que são extraídos da cena, as pessoas que dela fizeram parte, em que momento e contexto ela sucedeu, etc, podem ser ampliados e correlacionados aos valores de cada um sobre o que é importante em uma relação, de quem eles herdaram esses valores e do quão distantes estão agora em crise desses valores.
Nesta cena exposta ao terapeuta, que retrata quem eles foram um para o outro, aparecem adjetivos e características que estão amortecidas, uma vez que a versão pessimista de identidade vem “roubando a cena” ultimamente ou há mais tempo. O terapeuta continua investigando sobre os significados para cada um deles do outro ter apresentado qualidades que foram úteis para a vida da relação e se elas permanecem até os dias atuais.
A cena eleita por eles, portanto, é explorada dentro da perspectiva das práticas narrativas, especialmente quando nos referimos ao “guia” introdutório do mapa de re-autoria proposto por Michael White em 2007. Embora já tenha me referido a esta prática narrativa precedentemente neste artigo, considero importante fazermos um breve parênteses para que o leitor compreenda as adaptações aqui apresentadas para um contexto de primeira entrevista.
Na abordagem narrativa os seres humanos são considerados seres multi-historiados, logo, suas identidades não podem ser representadas por uma única história. Os fatos de nossas vidas ganham relevância ou permanecem obscurecidos a depender da interpretação que fazemos deles. Ao procuramos por terapia a visão que sustentamos de nós mesmos geralmente é obscurecida pelo pessimismo que tratamos a nós mesmos e a relação. O clima crítico trazido pelo casal desmerece a experiência mais abrangente do relacionamento, ao apresentar um recorte limitado e infeliz que não corresponde à totalidade do que viveram juntos.
Reconhecendo que nenhuma história é, em si, totalizante, cabe ao terapeuta permanecer atento as contradições que emergem e se contrapõem à imagem saturada trazida pelos cônjuges. Proporcionar uma re-autoria à história do relacionamento significa manter uma postura de investigação e curiosidade por parte do terapeuta de “capítulos” vivenciados pelo casal que contradigam a história dominante. Esses “capítulos” permanecem fora da história-problema que o casal vem carregando e, quando bem explorados, podem oferecer qualidades e esperanças que geram histórias alternativas que transformam a vida deles. A história alternativa que surge, fruto dos acontecimentos extraordinários, é promovida a partir de perguntas que contribuem para a desconstrução da história dominante.
Ao explorarmos quem eles foram, uns para os outros, fazemos uso de dois tipos de perguntas que demonstram as influências de Jerome Bruner na abordagem narrativa: aquelas relativas ao cenário de ação e outras relativas ao cenário de identidade. O cenário de ação ajuda o terapeuta a rastrear um tipo de apresentação das pessoas quando relatam a “cena de quem eram”, a qual evidencia características e adjetivos de cada um, em que contexto ou cenário a mesma ocorreu, quem fez parte da cena. Adentramos por sua vez no cenário de identidade quando perguntamos porque esta, no meio de tantas outras cenas que eles vivenciaram e que os caracterizaria, foi a eleita. As perguntas seguintes dão continuidade a exploração do cenário de identidade, encorajando as pessoas a explorarem territórios diferentes. Visam investigar possibilidades alternativas identitárias que não têm sido ressaltadas ultimamente, como por exemplo, “Que significado tinha para sua vida ter um parceiro que era ou se comportava daquela maneira? Ou ter um filho com essas características? Que tipo de conforto trazia para a sua vida eles serem como eram? O que vem se perdendo quando eles deixam de ser como eram? Esta cena e as características extraídas de cada uma das pessoas que fizeram parte dela se relaciona a quais valores apreendidos por você(s) do que é ser casal ou família? De 0 a 10, quão distantes vocês estão desses valores que são importantes em uma relação para que ela permaneça no tempo?
Após serem extraído os valores que os constituem não apenas como pessoas, mas também enquanto relação e terem sido convidados a pensar o quão distantes eles estão desses valores, continuamos a mapear a entrevista introduzindo o relato de uma cena atual que retrate a dificuldade pela qual os cônjuges estão passando e que os fizeram procurar por terapia. Como eles estão se enxergando atualmente, por quais perdas têm passado ao terem, atualmente, uma identidade relacional diferente do que se propuseram no passado, quais objetivos importantes a serem compartilhados em uma relação foram abandonados, etc., todo este material torna-se útil para permitir que o terapeuta adentre na fase do problema (HALEY, 1979). Tradicionalmente, esta fase é introduzida mediante a seguinte pergunta: “O que os trouxeram até aqui? ou “Qual a dificuldade pela qual vocês estão passando? Fazer uma analogia entre o que idealizaram para si e o que realmente estão conseguindo ser, permite aos clientes entrarem em contato com o dilema de suas vidas.
O terapeuta escuta de forma respeitosa os primeiros relatos das experiências de vida da pessoa e depois lhe solicita dar um nome ao problema – é o momento de batizar o problema. Esta nomeação tem o objetivo de levar a pessoa a sentir que controla o problema, possibilitando externalizá-lo. Além disso, ela é aproximativa, ou seja, deve fazer sentido para o(s) cliente(s) e pode mudar no decorrer do processo terapêutico.
White e Epston (1990) consideram que a pessoa e o problema eram entidades separadas, assim, uma de suas práticas mais significativas da narrativa foi a “externalização do problema”, que pode ser traduzida pela ideia de que a pessoa não é o problema, o problema é o problema. O processo de externalização do problema nos permite entrar em conversações externalizadoras acreditando que os problemas que levam as pessoas a nos consultarem não estão localizados dentro delas, mas que, ao invés disso, foram moldados por histórias mais amplas transmitidas por uma determinada cultura na qual estão inseridas (RUSSEL, CAREY, 2002). As conversações externalizadoras “descentralizam” os problemas, criando um espaço entre as pessoas e aquilo que as perturba. A linguagem externalizadora usada pelo terapeuta transmite, implicitamente, que o problema tem efeitos sobre a vida das pessoas, ao invés de ser parte delas. Utilizando essa perspectiva podemos substituir por exemplo, a expressão “a relação colapsou”, geralmente utilizada, por uma linguagem externalizadora “o colapso que tomou conta de vocês”.
É importante assegurar que a externalização se ajuste à experiência particular do indivíduo, pois isso o facilita a identificar habilidades e ideias novas para conviver e vencer o seu problema. Por exemplo, é mais fácil para uma mulher lidar com o “medo que a domina”, ao invés de ter que lidar com um “distúrbio de ansiedade”. Como o relacionamento das pessoas com o problema muda no decorrer da terapia, as externalizações também podem mudar. Outra pontuação importante diz respeito às diferentes definições de problema a serem externalizadas, uma vez que, ao trabalharmos com mais de uma pessoa, cada uma delas pode apresentar uma definição própria do problema a ser externalizado ou até chegarem a um consenso sobre um problema relacional. Por exemplo, externalizar a indiferença que se apossou do relacionamento.
Até aqui podemos identificar nesta proposta narrativa de primeira entrevista a novidade de diferenciarmos quem somos dos problemas que possuímos. Mas a abordagem narrativa vai além, quando propõe perguntas de influência relativa que apontam dois tipos de descrição: primeiro, a influência que o problema tem tido na vida das pessoas (como o problema tem interferido em sua vida?) e, segundo, a influência que a pessoa tem tido na vida do problema (em que momento o cliente conseguiu dominar o problema e qual tem sido a influência dele, cliente, na vida do problema?). Por exemplo, “De que modo a depressão aparece de vez em quando? Você acredita que ela esteja afetando a forma como você lida com as pessoas, ou, ainda, a forma como as pessoas têm lidado com você?” “Me conte um pouco mais sobre isso”. Uma descrição mais detalhada diminui a tensão do cliente fazendo-lhe acreditar que a influência do problema em sua vida é limitada. Perguntas como estas evocam um protagonismo que há muito tempo o cliente perdeu em sua vida, já que, na maioria das vezes, o problema passou a dominá-lo e reduzi-lo. Quando o terapeuta extrai um ou mais momentos em que o cliente pôde se sobrepor ao problema, ou seja, eventos que retratam que o cliente foi mais forte do que o seu problema e pôde dominá-lo, estamos diante de uma nova compreensão: “eu, cliente não estou mais reduzido ao meu problema, o problema existe independentemente de mim e eu sou capaz de dominá-lo”.
Após explorar a fase do problema, começando por batizá-lo e depois externalizando-o, prosseguindo com a influência dele na vida das pessoas e a influência destas na vida do problema. Estamos nos aproximando do final da primeira entrevista, momento propício para se traçar expectativas quanto ao processo terapêutico que estarão relacionadas a sonhos e esperanças de futuro. Esta fase última pode seguir uma hierarquia: (1) o terapeuta registra os objetivos particulares de cada uma das pessoas em terapia, bem como aquelas expectativas compartilhadas por alguns ou todos os presentes; (2) explora os valores e crenças que apoiam essas expectativas por eles traçadas; e, por ultimo, (3) extrai quais as esperanças e os sonhos que podem estar atrelados a essas expectativas.
Quando a sessão chega ao fim, as pessoas são avisadas sobre um certificado (contrato) terapêutico que será entregue na sessão subsequente com as “cláusulas” do processo terapêutico. Este documento deve ser composto de uma página e nela deve constar introdutoriamente, um breve resumo das cenas essenciais que definem a primeira entrevista, dos conteúdos mais significativos abordados e, por fim, ilustrar as cláusulas acordadas na sessão anterior. Ele tem um valor simbólico que favorece o compromisso de todos quanto ao “destino” da terapia, mas também ilustrará, em um futuro, o quanto eles estão ou não na trilha para alcançar os objetivos iniciais traçados, se eles continuam sendo válidos ou se serão substituídos por novos acordos, o que define que este documento pode ser reformulado durante o processo. Assim como nenhuma história, em si, pode abarcar todos os elementos de nossa experiência real, nenhum documento pode ser considerado definitivo, os relatos e o contrato são sempre passíveis de revisão, assim como o são as nossas vidas e as nossas experiências.
Experimentar este modelo de entrevista de casal surpreende e motiva os cônjuges a resgatarem uma parte amortecida do relacionamento que ficou obscurecida mediante a crise que vêem passando. O convite a uma cena preferida desloca o casal de um clima emocional denso e desgastante para emoções mais atenuantes e prazeirosas, restaurando, de certa forma, a imagem deteriorada que vinham sustentando de si, do outro e do relacionamento. Como afirmamos anteriormente, esse modelo de entrevista não tem a pretenção de unir o casal, pois essa não é uma decisão que caiba ao terapeuta, mas, ao menos, alivia o clima de conflito e ameniza a imagem carregada da relação. Enquanto pudermos ser originais e surpreendentes com os nossos clientes trazendo à tona um cenário que os alivie da dor que arrastam, estaremos cumprindo o dever de explorar, junto a eles, diferentes alternativas para a relação. A utilização desse modelo de primeira entrevista fundamentado na abordagem narrativa nos auxilia a seguir este propósito.
Entrevista Relacional de Stephen Madigan
Fisicamente, habitamos um espaço, mas,
sentimentalmente, somos habitados por uma memória
José Saramago
Neste tópico falaremos da proposta de entrevista relacional de um grande discípulo de Michael White e David Epston, o canadense Stephen Madigan. Este autor tem pesquisado e aplicado um tipo de entrevista relacional de casal oportuna em momentos cujos processos jurídicos estão em vigor e necessitam do auxílio de um terapeuta que possa mediar o conflito em questão a fim de estabelecer possíveis novas bases para que um contrato relacional de futuro possa ser estabelecido. O que o fez desenvolver esses tipo de entrevista foi perceber o quão perdidos os cônjuges ficavam quando assinavam um acordo jurídico, sem que tivessem sido minimamente instrumentalizados em como pô-lo em prática. Embora muitos acordos jurídicos fossem assinados, uma grande parcela deles não era cumprida por falta de orientação e incompetência do casal. Com o intuito de auxiliá-los neste percurso Stephen Madigan compila uma entrevista original mas, acima de tudo, de grande maestria para redefinir a nova vida separada do casal.
Madigan não está interessado no resgate da relação conjugal para que eles permaneçam juntos, mas sim, que o casal encontre as bases éticas e os valores morais que sustentaram a relação antes que ela declinasse para a forte crise e decepção pelas quais estão passando. Seu intuito é criar uma “fundação“ ou uma plataforma que ancore o casal em um lugar seguro, reconhecido, que possa ser restaurado, tornando-o capaz de encarar o acordo de uma nova vida separada a partir da “dignidade relacional” recuperada pelas intervenções terapêuticas construídas em sessão.
O trabalho proposto por Madigan (2011; 2018) é o de criar uma atmosfera que permita ao casal resistir a falar do conflito “empurrando“ o problema para fora da conversação terapêutica, diminuindo, assim, o espaço de evidência que o problema vinha ocupando na vida deles. O conflito sempre vai tentar ter algo a dizer e, se deixarmos, nossa experiência permanecerá tiranizada por ele, impedindo que possamos prosseguir com a conversação terapêutica sem sermos dominados pela história saturada do problema. Geralmente as histórias dos conflitos assumem muito poder no setting e, como terapeutas, devemos persistir na tentativa de desmerecer este poder, apequená-lo para que novas histórias possam ser encorpadas e incorporadas à dimensão vivida no presente.
Essas entrevistas relacionais têm um poder de produzir um resultado muito diferente. Para tal, é necessário que, enquanto terapeutas, possamos encontrar um lugar seguro para o casal se posicionar. A forma de fazermos isso é, antes de qualquer conversa sobre o conflito, quaisquer acordos de separação, tentarmos ajudá-los a remembrar as histórias do relacionamento, de modo a fazerem uma distinção entre a história do sofrimento e a história da ética e dos valores, favorecendo que a segunda história seja privilegiada em detrimento da primeira e, assim, surja um espaço dialógico para uma ética compartilhada. A maioria dos casais acaba concordando com essas conversações de remembrança.
Geralmente o terapeuta introduz a sessão dizendo que nada sabe sobre eles enquanto casal, da história que os trouxe à terapia, mas que gostaria de lhes pedir licença para que antes de falarem do conflito, eles pudessem situá-lo a respeito de como se conheceram. Assim os questiona, “Nada sei sobre vocês, se importam de me atualizar sobre a história do relacionamento? Poderiam me contar onde e como se conheceram?” O pedido terapêutico de não entrar diretamente na história do conflito e sim na história deles, juntos, é geralmente recebida com confiança pelos entrevistados, na esperança e credibilidade com que chegam à terapia, de que possam se tornar mais civilizados. A história que eles contam é uma história há anos adormecida, distante da visão atual destrutiva que carregam um do outro e do relacionamento.
Mas o grande salto propiciado por este autor é sair de uma entrevista habitual de um modelo moderno, onde duas individualidades eram escutadas, para entrevistar o relacionamento. Estávamos habituados dentro de uma ótica moderna a uma escuta que nos permitisse encontrar a causa do conflito e “consertar” os déficits familiares que nos levava a cura. Entrevistar a relação permite movê-los da individualidade de cada um, dando uma guinada na perspectiva anterior individualista, sugerindo ao casal colaborar com o relacionamento - o relacionamento específico que eles criaram, com valores de respeito, cuidado e de ideal de felicidade conquistados em um passado mais remoto, de quando se sentiram orgulhosos por pertencerem a um nós. Quando decidimos olhar para a memória do relacionamento junto com o casal, e não iniciar com a memória histórica do sofrimento, começamos remembrando ética e valores. Este é o ponto de partida (MADIGAN, 2018).
Enquanto terapeutas, ao nos aproximarmos dessa história dos valores e da ética do casal, estabelecemos uma distância proximal do conflito, criando espaço para afastá-los do individualismo e, com isso, podermos criar uma experiência relacional. Quando o conflito “entra” no relacionamento, ele entra individualizado. Um terapeuta pode aumentar o conflito potencializando esse individualismo. Quanto mais condições relacionais pudermos criar, mais difícil é para o problema dominar a conversa. O casal compreende quase que intuitivamente que seguir com raiva e culpabilização os manterá na tensão destrutiva do conflito, exaurindo quaisquer possibilidades de um acordo que suporte uma história preferida futura deles separados que os liberte da sensação desgostosa que vem encharcando suas vidas.
Uma base segura que dá suporte ao casal para adentrar na proposta terapêutica de resgate da dignidade relacional pode ser construída a partir de algumas perguntas de remembrança: Onde e como o casal se conheceu? Que tipo de relação eles imaginaram ou pretenderam criar juntos e por quê? Havia alguma ética relacional na qual se fundamentaram para construir sua relação (confiança, bondade, fidelidade, amor)? Por que sentiam que essa ética seria vital para a construção da relação?
Paulatinamente, o terapeuta auxilia o casal a resgatar um passado que ficou para trás, mas significou muito para eles porque esteve conectado com o que de melhor eles foram um para o outro - um passado relacionado aos valores e a ética relacional que os fez acreditar muito tempo no relacionamento e achar que valia a pena estar juntos - introduzimos uma identidade imaginada da relação, onde parte dela é remembrada e, outra, é nova. Experienciar esses valores e esta ética no presente é fundamental. O passado passa a influenciar o presente, e as perguntas exploradas em sessão permitem a reconfiguração da identidade da relação. A imaginação que vai tomando forma se baseia nos valores que são acalentados naquilo que o casal gostaria que o relacionamento se transformasse. A pergunta que persiste na mente do terapeuta é: no que este relacionamento quer se transformar?
Algumas outras perguntas introduzidas na sessão são referentes aos ritos de passagem como, por exemplo, “Quando foi que a relação de vocês passou de uma relação de amizade para uma relação íntima?”, “O que consideram que mudou na relação com o nascimento do primeiro filho ou a partir da mudança do país de origem para o que vocês estão vivendo agora?”. Todos estes questionamentos nos dão algumas pistas de como o relacionamento se comportava em momentos de transição. Essas pistas serão necessárias para o resgate das competências que servirão para o momento presente, quando necessitam estabelecer um acordo sobre a nova vida separada, auxiliando, também, o futuro que eles vão enfrentar.
Outros questionamentos que auxiliam um futuro imaginário para a relação podem ser ilustrados por: “Como seria contar esta história na época do nascimento do seu filho?”, “Qual tipo de respeito esta relação precisa receber no presente, para poder transportar vocês para o futuro?”, “Agora que os vejo um pouco mais conectados a história dos valores e da ética dessa relação, como vocês acreditam que podem contribuir para o futuro da função parental que devam exercer?”, “Como o relacionamento de vocês se sentirá?” Através dessas perguntas a entrevista relacional oportuniza que uma experiência narrada no presente possa introduzir uma projeção futura.
Madigan (2018) associa o seu trabalho de entrevista relacional com aquilo que acontece em uma piscina olímpica, plena de raias com seus espaços aparentemente isolados, porém, interconectados - aquilo que ocorre em uma raia está diretamente relacionado ao que acontece em outra raia, pois elas estão inter-relacionadas. Quando questionamos a um casal, por exemplo, em que momento eles perceberam que deixaram o cuidado de lado e passaram às ofensas mais dolorosas, estamos mudando de raia. Percorremos uma trajetória investigativa de um tempo onde o clima relacional era ameno e saudável para uma mudança temporal onde o clima emocional se tornou mais ácido. Mudar de raia significa adentrar em um novo território de exploração da vida do cliente que pode favorecer a abertura de mundos possíveis.
Pensemos no caso de um casal cujo silêncio tem se instaurado e impossibilitado há muito tempo qualquer tentativa dialógica. Muitas vezes o silêncio se instala na vida do casal e permanece por um longo período, até que o casal colapsa e não sabe mais como conversar. Vir à terapia e vivenciar a transformação de um silêncio gélido em uma conversação de resgate dos valores e ética relacionais pode ser uma oportunidade única deles encontrarem um “território comum” que funcione como uma plataforma que ancora o cuidado pela relação que, logo em seguida, pode funcionar como o lugar seguro que o casal necessita para ser convidado a se transportar para um futuro imaginado. Quebrar o silêncio e encorpá-lo em um diálogo restaurador pode ser a oportunidade de deixar de nadar solitariamente numa piscina olímpica e passar a explorar as diferentes raias que ela possui, considerando que o trabalho realizado em uma raia não independe daquele realizado em outra raia, portanto, nunca nadamos sozinhos, somos convertidos à ideia de explorar uma piscina olímpica considerando todas as raias.
Uma vez perpassando pelas diferentes raias, outra maneira de inserir a dimensão futura é quando o terapeuta intervém, por exemplo, presentificando um terceiro na conversação. No caso de casais é muito comum presentificar um filho pequeno e projetá-lo para alguns anos depois, convidando-os a pensarem em como esse filho poderá ser influenciado pelos valores e ética relacional que estão sendo recuperados na entrevista. Um questionamento que ilustra essa possibilidade seria: “O que de melhor poderia acontecer para a filha de vocês, hoje com dois anos de idade, se pensássemos nela aos dez anos, tendo tido vocês como pais colaborativos? Como influenciaria a vida do filho de vocês saber que algum dia o relacionamento de seus pais foi baseado em amor?
Neste ponto a entrevista recupera um clima emocional que os distancia da sensação de fracasso individual com que chegaram para o início da sessão. Esse deslocamento introduz um cenário mais próximo a um acordo esperado pela instância jurídica e um mapeamento de como eles podem prosseguir na nova relação é oportunizado. O casal não se vê mais “abandonado” em como pragmatizar uma vida de separação, mas abastecido de possibilidades construídas na terapia. O corpo jurídico e o terapeuta compõem juntos uma equipe que constrói um percurso a ser cumprido pela nova família, não mais paralisada pelas dores das perdas e fracassos, mas por uma dignidade relacional restaurada que pode guiá-los em direção a um futuro.
As intervenções referentes à entrevista relacional de Stephen Madigan são complementadas pelo uso de cartas terapêuticas. Inicialmente ele escreve uma carta para o relacionamento do casal e pede que, em separado, cada um responda a sua carta, permanecendo sem comentá-las entre si antes de trazê-las à sessão. Envia a carta pelo menos 72h antes da sessão, não muito antes para não dar tempo demais para eles ficarem pensando a respeito. Pede que cada um faça uma carta do relacionamento baseada nos valores e na ética relacional que experimentaram um dia. Para que não fiquem muito longas e dificulte a exploração em sessão, ele limita a resposta a, no máximo, 150 palavras (MADIGAN, 2018).
Depois que o terapeuta escreve uma carta para o relacionamento do casal e cada um deles responde à carta, ele pede a cada membro do casal para trazê-las para a sessão: por um lado, para apoiar esta nova história do relacionamento; por outro, para testemunhar a releitura das cartas. Elas são lidas em presença do parceiro e do terapeuta, escutadas geralmente dentro de um clima emocional intenso. Após um longo período de intrigas e desavenças, parece que o casal se conecta a significados mais profundos de quem foram um para o outro e do quão significativo foi o relacionamento. Isso ameniza as emoções negativas que têm experimentado ultimamente e os remete a outras sensações históricas provocando, às vezes, uma “convulsão” que pode chegar a iminência de um acordo contratual de como seguirão na regência dos filhos, na divisão de bens, nos relacionamentos com à comunidade, etc.
O próximo passo é o terapeuta entrevistar cada um dos ex-cônjuges, respondendo à carta que o relacionamento escreveu para eles. Neste momento são úteis alguns questionamentos: “Você consegue descrever a sua emoção ao ler esta carta e ao escutar a carta que o relacionamento escreveu para ele(a)?”, “O que vocês acham que a relação de vocês dois precisaria que vocês fizessem por ela (a relação), para servi-la e não decepcioná-la?”.
Sabemos que os relacionamentos não sobrevivem sozinhos, que ao redor deles existem muitas pessoas significativas que compõem uma rede de apoio. As intervenções terapêuticas podem ser dirigidas a essa gama de relações que também ficou “desamparada” quando o casamento entrou em falência - os amigos, os colegas de trabalho, à comunidade em geral - todos eles merecem ser situados quanto a como devam se comportar.
Com relação ao quanto um casamento e uma separação podem estar relacionados a outras relações podemos perguntar: “Você acha que você subestimou a importância das outras relações em detrimento da relação íntima de vocês dois?”, “Têm a sensação de que em algum momento do passado, se descuidaram um do outro para atender ao que lhes foi solicitado pelos demais?” Aqui podemos destacar um ponto relevante. Quando um relacionamento acaba, a comunidade não sabe como lidar com o término. Pode ser útil em sessão explorar com o casal como querem se comportar com os familiares e amigos que compõem a rede de relacionamentos deles. Talvez não exijam dessas pessoas tomarem partido em nome de uma lealdade, pois muitas intrigas entre aqueles que os rodeia pode dificultar ainda mais o momento crítico que o casal já está vivendo. Eles estão diante de inúmeras novas exigências e a tensão que os permeia dificulta a tomada de decisões. Um terapeuta nunca pode esquecer que uma relação pós-separação será sempre mais difícil do que foi o casamento (MADIGAN, 2018). Portanto, um auxílio terapêutico em como lidar com esses outros relacionamentos pode ser muito útil para a vida deles separada.
Embora em sua grande maioria as entrevistas relacionais não tenham sido pensadas em contextos de restauração do relacionamento conjugal, mas sim, contribuam para a construção de como seguirem bem separados, uma vez que muitos casais se dão conta de que a única forma do relacionamento sobreviver é os dois tomarem conta do relacionamento deles. Nestes casos cabe ao terapeuta questionar: “Como o seu relacionamento foi tratado nesta semana?”, “O relacionamento foi muito paciente conosco esta semana, porque tem cuidado dos filhos e da casa a semana inteira”. “Decidimos levar o relacionamento para tomar uma taça de vinho, porque não tínhamos cuidado do relacionamento esta semana”. O casal não está fazendo isso por obrigação, por si mesmo ou pelo outro, mas pelo bem do relacionamento.
Considerações Finais
Deparamos-nos com duas propostas de intervenção na vida de um casal cujas entrevistas se baseiam em práticas narrativas que enaltecem as competências e a “dignidade relacional”. Proporcionar aos cônjuges essa memória positiva de quem eles foram um para o outro os distancia da memória do sofrimento pelo qual estão passando dando-lhes a oportunidade de respirar com alívio uma imagem mais promissora da relação, distante temporariamente do conflito.
Em alguns casos, a entrevista percorre “capítulos” significativos da vida do casal, lembrando-lhes do quanto já foram importantes um para o outro e de razões que os fizeram “batalhar” juntos pelo relacionamento. Essa investigação extraordinária pode significar um combustível para mais uma nova tentativa de ficarem juntos. Por outro lado, mesmo conectados às cenas positivas que vivenciaram, a decisão pela separação permanece e a entrevista assume novos rumos, instrumentalizando-os a como prosseguirem no futuro com as responsabilidades parentais, a partilha dos bens e dos afetos conquistados por todos aqueles ao redor do relacionamento.
O trabalho clínico com esses casais constitui um grande mergulho. Quando imersos na dor das perdas de uma relação, o casal se sente obstruído e a conversação permanece limitada, reduzindo-os a uma imagem indecorosa, que não corresponde a outros tantos momentos que evidenciaram a história significativa do relacionamento. Enfrentar a crise do relacionamento, definir pelo rompimento de uma relação ou assinar um acordo de como prosseguirão não constitui uma tarefa fácil. O terapeuta narrativo é aquele que proporciona o resgate de valores, cuidados, interesses e ética do relacionamento que formam um acervo inominável o qual auxilia nas decisões de um momento tão crítico pelo qual eles estão passando.
A analogia que Madigan (2018) faz de seu trabalho de investigação terapêutica através das diferentes raias de uma piscina olímpica é uma metáfora perfeita para compreendermos sua entrevista relacional com casais. “Entrar” em uma piscina olímpica e perceber que o casal está sem fôlego, correndo o risco de se afogar nos compromete a ofertar uma exploração dialógica que possibilite nadar de uma raia a outra, percebendo as melhores braçadas desses nadadores. Ampliar a visão que eles trazem do relacionamento restaurando os valores e a ética consiste em um excelente “treino” para explorarem a dimensão olímpica da piscina. Sair dos limites das raias individuais e compreender que as braçadas de uma raia dependem de outras braçadas em novas raias pode restaurar a imagem do relacionamento. O casal reconhece que valeu ter participado das olimpíadas, que houveram momentos dignos de um “troféu”. Construir um “podium” com o casal sobre quem foram no relacionamento fundamenta as bases para eles assumirem melhor as decisões e o futuro que pertencerá a cada um deles.
REFERÊNCIAS
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