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Na Toca do Leão: violência contra a criança


“Não tento esconder dos meus mestres o meu desespero e temor quando me encontro ao lado da soberania e da covardia. Não consigo encontrar o meu lugar num lugar onde só o que sobrevive é a dor, o pranto e os santos. A revolta me faz refém, a incompreensão me ensurdece, e o medo me torna muda. Não quero, muitas vezes, o conhecimento da história daquele que me faz chorar e me paralisa o espírito. Não quero o aconchego da sabedoria, prefiro permanecer na ignorância. Porque nela não percebo as minhas fraquezas, os meus limites, as minhas impossibilidades. Não desejo ultrapassá-las, nem enfrentá-las. Não tenho coragem para tanto. Sendo assim, estou presa na toca do invasor, à mercê de sua agressão. Sou mais uma de suas vítimas”.

Depoimento pessoal a respeito da condição de terapeuta num caso de abuso infantil.

A história mostra que desde os tempos primitivos até o momento presente, a violência contra a criança se apresenta como um fenômeno social e cultural de grande relevância. Em diferentes sociedades as formas, as mais cruéis e as mais sutis, se diferenciam. No Brasil podemos distinguir uma violência estrutural, cujas expressões mais fortes são o trabalho infantil, a existência de crianças nas ruas e em instituições fechadas; e uma violência social que principalmente se configura na violência doméstica e que, por sua vez, é refletida nos mais diferentes contextos de atuação da criança (escola, relação com os amigos, familia extensa e etc.). O Estatuto da Criança e do Adolescente oferece importante instrumento para que a sociedade e o Estado possam, reconhecendo o protagonismo desses sujeitos, superar as formas de violência que prejudicam o seu crescimento e, portanto, o seu desenvolvimento social (MINAYO, 2001).

A violência intra-familiar é aquela exercida contra a criança na esfera privada. Expõe uma perspectiva de família diferente do conceito dado pelo senso comum, no qual a função da família é a de proteger, zelar e cuidar de seus membros. Estas três funções remetem às condições fundamentais para o desenvolvimento físico, psicológico e social saudável de uma criança. Quando lhe são negadas essas condições, o apego e o sentimento de pertencer a uma família são construídos de modo frágil, propiciando a construção de uma história de vida baseada em versões desencantadas (BOWLBY, 2002). A violência doméstica está sempre associada à idéia de abuso de poder. Para tanto é preciso haver uma hierarquia de poder que se exercida de forma abusiva e autoritária pode caracterizar as relações familiares, especialmente a parental, como uma relação essencialmente tecida por discursos e atos violentos.

Foucault (2002) afirmava que a legitimação do “bater para educar” pela sociedade ocidental é um dos procedimentos fundamentais para o desenvolvimento da soberania parental arbitrária. As famílias que correspondem a esse padrão de conduta, segundo o autor, são geralmente caracterizadas por um modelo patriarcal e dominador, por preconceitos sextistas, além de estabelecer uma comunicação pobre com outros sistemas sociais. Nestes casos, a violência se evidencia como uma das maneiras de resolução de conflito familiar, sendo legitimada pela relação entre verdade estática (senso comum) x justiça. Ainda há o fato de o espaço familiar ser aquele que requer vigilância constante: dos corpos, dos pensamentos e sentimentos. E isto o torna um espaço de domínio estritamente particular, embora protegido socialmente. O que, por sua vez, dificulta as denúncias e permite que a criança abusada permaneça aprisionada na toca do invasor.

A avaliação da violência intra-famiiar dependerá da freqüência, da intensidade, severidade e duração do abuso. A vítima reagirá à violência respondendo de acordo com o funcionamento do relacionamento afetivo com o abusador, com a família e com as redes sociais. Quanto mais estreita for a sua ligação com outros membros familiares ou com vizinhos e professores da escola, por exemplo, maior a chance de ser quebrada a lei do silêncio com o abusador (FURNISS, 2002).

A escola, dentro deste contexto, funciona como mais um agente que integra a rede de apoio social da criança ou adolescente abusado. Daí justifica-se a importância da efetivação de um trabalho preventivo que inclua a escola e seus agentes como possíveis identificadores de situações de violência. Ademais, o ambiente escolar caracteriza-se como terreno propício para o estabelecimento de vínculos de confiança, já que as possibilidades de se desenvolver relações afetivas com diferentes pessoas que ocupam determinadas posições na hierarquia de poder são múltiplas – colegas + professores + coordenação (MACHADO, 1997). E isto implica na oportunidade do abuso ser denunciado por uma dessas pessoas que fazem parte deste círculo de confiança. Atenta-se que a escola ainda pode funcionar como uma ponte que intermedeia o discurso de pais e filhos, podendo assim identificar lacunas entre os mesmos e, desse modo, perceber padrões de comportamentos que sinalizam famílias abusivas e/ou transgeracionalmente disfuncionais.

Nesses casos há uma transmissão intergeracional de práticas disciplinares autoritárias e punitivas, o que corrobora para a instalação da agressividade como regra primaria na construção dessas relações e a consequente inabilidade em se estabelecer vínculos afetivos. Observa-se, a partir disso, um sério comprometimento do desenvolvimento emocional da criança, a qual apresentará dificuldades para estabelecer vínculos de confiança, relações de amizade e trocas afetivas. Além disso, o desenvolvimento cognitivo também poderá ser comprometido, acarretando em baixo rendimento escolar (Arón, 2001).

Dessa forma, intervenções precoces agenciadas por membros familiares, e rede de apoio associada - escola, terapeuta, vizinhos e amigos - são fundamentais para a interrupção do ciclo vicioso da violência, protegendo a criança dos efeitos colaterais nocivos para seu crescimento saudável, convidando-a a sair da toca que a devora. Portanto, a criança que sofre maus-tratos por parte de um membro familiar terá a chance quando adulta de rememorar passagens de sua história que não sejam somente formatadas em preto e branco, mas que também ressoem dentro dela com um colorido vivo e especial.

Referências Bibliográficas

1. ARÓN, A.M. (org). Violência en la família. La experiência de San Bernardo. Santiago

De Chile: Galdo, 2001.

2. BOWLBY, J. Teoria do Apego. São Paulo: Artmed, 2002.

3. FOUCAULT, M. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

4. FURNISS, T. Abuso sexual da criança. Uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre:

Artmed, 2002.

5. MACHADO, A. & SOUZA, M. (orgs). Psicologia escolar. Em busca de novos rumos.

São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

6. MINAYO, M.C. Violência contra crianças e adolescentes. Questão social, questão de

saúde. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, n. 1, v. 2, Recife, 2001, p. 91-102.

7. SUKIENNIK, P.B. (org). O aluno Problema. Porto alegre: Mercado Aberto, 2000.

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