Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida
Ensaio sobre o livro Cegueira moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida.: BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 264pp.
No ritmo acelerado do mundo contemporâneo, no qual a atenção dificilmente consegue se fixar em algo importante, corremos o sério risco de perder a sensibilidade em relação aos outros. Em “Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida” (2014), Zygmunt Bauman, o maior pensador social contemporâneo, junto com o filósofo e professor de ciência política da Lituânia, Leonidas Donskis, fazem uma análise brilhante desse novo mal que assola nossa época e nos anestesia perante o sofrimento alheio. Uma leitura fundamental e de grande interesse para todos aqueles que se preocupam com as mudanças mais profundas que, silenciosamente, moldam a vida dos homens na modernidade líquida, uma modernidade que retrata tanto fenômenos compostos de aparência, quanto desprovidos de referências.
Bauman é talvez o maior pensador da humanidade que traduz, nomeia e contribui para a nossa compreensão sobre ela. Lembrando que a sociologia pertence ao campo das ciências humanas, a sociologia dele é o próprio relato da experiência humana (sentimentos, desespero, insensibilidade, relações humanas). Assim, ele provoca no seu leitor uma postura ética de se implicar no próprio discurso, de reconhecer a alteridade do Outro, deixando de lado a tão conhecida dicotomia entre quem diz e quem escuta, entre quem escreve e quem lê.
Para quem não tem familiaridade com a adjetivação pós moderna deste autor, atribuindo aos fenômenos atuais as mesmas propriedades presentes nos líquidos, a vida líquida é aquela que facilmente se dissolve, evapora e dissipa de nosso controle, de nossa consciência e de nossos valores mais absolutos. Na transitoriedade e na banalidade de nossos laços afetivos, o compromisso é um palavrão, significando a contramão de como a pós modernidade se apresenta. A palavra de ordem é, ao invés disso, o descaso, a indiferença e o mínimo sentimento de coletividade. O individualismo se expressa ferozmente, nos induzindo à nomeada imoralidade de tempos antigos, pois a defesa do grupo, o olhar cuidadoso e genuíno às necessidades do outro persistem como uma esquecida nota de rodapé de nossos tempos contemporâneos.
"Salve-se quem puder" é o lema atual, cuja vida política se desloca para os bastidores e os nossos líderes são fantoches desrespeitosos e incrédulos por uma multidão que se veste de indiferença para sobreviver à violência da qual não apenas faz parte, como contribui para sua existência. Impedido de assumir uma postura ética diante dos devaneios atuais, distante de suas premissas mais básicas do viver, o cidadão atual nada mais é do que uma ilha isolada defendendo seus interesses, tão pouco apropriados pelo próprio sujeito que o defende, visto que ele nada mais é do que um representante inócuo de uma massa produzida e manipulada pelos meios de comunicação.
A tirania de nossa Era Tecnológica nos obriga, constantemente, a sermos nas redes, pois só assim nos fazemos presentes, ou melhor, existimos. Estamos em uma Era cujos dilemas não são permitidos, pois as possibilidades são amplamente ofertadas. Então, por que devo parar e me concentrar no outro ou em seu problema, quando no meu curto espaço de tempo, na minha indisponibilidade, não posso perder tempo com a vitimização de quem não reproduz a ideologia dominante (dilemas, não, possibilidades)? O viés tecnológico nos induz a espionar a vida do outro sem o menor interesse de nela permanecer. Invado e vazo, sem que qualquer compromisso seja firmado. Apertando uma única tecla delete, apago qualquer indivíduo que antes considerei amigo.
Estamos vivendo na época da ambivalência. As certezas de outrora sobre onde estava o bem e o mal foram substituídas por uma indiferença e um descaso que não mais dialoga com qualquer tipo de parceria, mas, ao invés disso, nos convida a buscar o mal dentro de nós mesmos, estabelecer um confronto e um diálogo com nossas próprias perversões. "Assim, o mal não está confinado às guerras ou às ideologias totalitárias, mas sim quando revelamos uma atitude indiferente ao sofrimento do outro, muito comum na atitude que ele denomina de cegueira moral do homem contemporâneo”.
O formato invisível da maldade na Modernidade Líquida nos perverte a cometer crimes em nome de uma lealdade absurda ou do cumprimento de uma ordem. Acender a câmera de gás nos campos de concentração do regime nazista nos exime da culpa, pois estivemos apenas cumprindo ordens. Parar em um semáforo e enxergar apenas a luz vermelha ou verde, nos abstendo da miséria encarnada nos flanelinhas, é mais um exemplo da nossa cegueira moral, do nosso descompromisso diante da violência da qual somos parte operante.
A alienação que nos acompanha em um cotidiano veloz é caracterizada pelo descarte de certezas absolutas dos tempos sólidos. A incerteza existencial indigestamente degustada pelo homem contemporâneo é uma apavorante mistura de ignorância e impotência, fonte inesgotável de humilhação de um grupo denominado precariado (mistura de proletariado e classe média, termo cunhado pelo professor e economista Guy Standing) que vivencia o pavor de montantes de contas a pagar e a concomitante realidade indisponível de um mercado frígido de ofertas de trabalho, gerando uma fonte de sofrimento que, longe de agregar, fragmenta e divide seus sofredores.
Muitos foram os autores que denunciaram há tempos os prejuízos de nossa Era. Milan Kundera em seu romance, “A Imortalidade”, defendeu de que a realidade desapareceu. Apresentara uma de seus personagens, uma velha senhora do interior da Boêmia, que mais domínio tinha sobre sua própria vida do que um empresário que circulasse pela Wall Street. Somos um grupo anônimo de seguidores de crenças frágeis e voláteis, robóticamente cumpridas por uma massa descomprometida. Aquilo que momentaneamente nos é apresentado pela mídia ganha, rapidamente, o status de verdade. Os imagólogos são os engenheiros e construtores de imagem que se utilizam da mídia para manipular seus seguidores que reproduzem modelos sem a mínima crítica. Simulações de realidade ou fabricações de consciência foram descritas em livros como “1984”, de George Orwell ou “Admirável Mundo Novo”, de Huxley, evidenciando a manipulação dos meios de comunicação sobre os indivíduos e a sociedade.
Os denominados atos adiafóricos são aqueles dispensados por consenso social (local ou universal) da avaliação ética, portanto, atos descompromissados de qualquer vergonha, dores na consciência ou estigma moral. O sujeito contemporâneo se comporta desta forma "protegido" pelo anonimato de uma comunidade que invalida qualquer Outro, considerando irrelevante tudo aquilo que não atende aos interesses próprios. A solidariedade é esquecida, os acordos solenes são desfeitos de uma hora para a outra visando apenas o que agora pareça relevante. Nessa transitoriedade, adotamos uma atitude blasé em aspectos que em outros tempos eram enaltecidos - o trabalho, as relações, os valores - perdendo-se o discernimento entre o que é verdadeiramente importante e o que pode ser descartado. Ser blasé é trocar de um polo a outro sem sequer saber o porquê da troca.
"Não vivemos em uma era de pensamentos mas, sim, de fragmentos sonoros", dizem os autores. A possível evaporação de nós mesmos pode ser sanada mediante o Outro que nos reconhece, porque a memória vem de fora. São os Outros que dão testemunho de nós e do mundo ao nosso redor. Os outros encontram em nós o que nós mesmos perdemos. Mas esses outros nada mais são do que uma comunidade do esquecimento necessário aos interesses de uma classe dominante - os imagólogos.
O romance ou evangelho do avesso de nossos tempos modernos “A possibilidade de uma ilha” de Houellebec, apresenta a morte de Deus quando se exterminam os laços humanos e sociais, atribuindo uma correlação entre a existência de Deus e os poderes da comunidade. Quando os alicerces da sociabilidade humana se esvanecem, quando a linguagem se obstrui e os sentimentos não encontram via de expressão, estamos diante da presença de Satã. Os que habitam este tipo de sociedade, os bárbaros da humanidade contemporânea são indivíduos desprovidos de emoções e sentimentos, puramente inteligentes, frios e insensíveis. Estão isolados em seus narcisismos, diluídos em comunidades virtuais, sem um líder a quem respeitem, atribuindo a si mesmo a totalidade e o poder de suas decisões. Esse livro é uma teoria sociológica da sociedade, uma sociedade onde as pessoas não desejam mais estar juntas. Quando são frustradas, substituem qualquer laço por outro que lhes forneça vantagens.
O indivíduo contemporâneo teme sua morte e sua extinção. A ciência, a tecnologia e a genética constroem possibilidades anti envelhecimento e pró imortalidade. Estamos em um mundo que exacerba o desejo, ao mesmo tempo que o castra. O amor e o erotismo são substituídos pela masturbação, ou seja, por fazer sexo com quem realmente é importante para mim - eu mesmo. Portanto, não existe mais o encontro de corpo e alma com um Outro, mas sim um prolongamento da autossuficiência do homem tecnológico que se estimula no espaço virtual através da pornografia. Temos que nos usar, uns aos outros antes que o nosso prazo de validade expire.
Leonidas Donskis pontua a traição e a lealdade como fenômenos do nosso mundo dignos de apreciação. Cita a analogia da identidade do homem moderno com os móveis modulares da Inglaterra na década de 60: módulos independentes eram comprados em quantidades referentes às condições do comprador e eram montados de acordo com o que o instante exigia, o armário de ontem virava uma cama hoje, sem garantias do que viria a ser amanhã. Assim, a identidade do indivíduo se transforma a cada momento, a depender de sua situação e necessidade, podendo se alterar a cada novo dia. Os seres humanos não pertencem a mais nada e a ninguém em sua inteireza de personalidade, qualquer imersão em grupos de pertencimento é desfeita e abandonada livremente, qualquer contrato assinado hoje pode ser quebrado sem que a palavra entre em desonra.
Cada um de nós pode se tornar o que quiser. Escolhe sua nação, bem como qualquer identidade moderna que lhe convier. Os poderes da comunidade e da cultura estão tão frágeis, a sociabilidade tão prejudicada, que a identidade passa a ser uma compilação de máscaras sem significados. Sem essência e de pura aparência, somos verdadeiros líquidos em recipientes, onde a nossa forma de ser se molda e se adequa a cada novo círculo de convivência ao qual participamos. Nossa maleabilidade é indecente - assumimos rostos diversos e disfarçados conforme a exigência do agora, sem nos determos a qualquer dimensão de ética e lealdade. Nossos direitos camaleônicos, auto-intitulados e endossados por uma sociabilidade débil, assumem o ápice do narcisismo, ignorando qualquer vestígio de existência de um camarada.
As metáforas da Era Moderna não cessam. Assim como os móveis modulares, Don Juan de Marco é outro herói da modernidade. Campeão da sedução, do erotismo e do prazer absoluto e fugaz, ele extrai de suas amadas tudo que deseja e nada lhes oferta, nem mesmo o seu nome para que se livre de qualquer compromisso. Diante dessa metáfora líquida do descompromisso moderno, onde foram parar conceitos como lealdade e traição? Na Era do homem situacional, a lealdade torna-se inoperante, desconfortável e ofegante. A fidelidade, por sua vez, é o avesso de Don Juan, é a coragem de revelarmos nossas fraquezas e limitações mais profundas, é a entrega incondicional a outro que nos ajuda na revelação de quem somos, ao mesmo tempo que admitimos nosso despreparo para reconhecer tamanhas debilidades.
Será que a evaporação de nós mesmos pode ser sanada mediante o encontro com outro? Os Outros são o testemunho de nós e do mundo ao nosso redor. Vivendo um momento de perfeccionismo, de culto ao corpo, de aparência e de satisfação momentânea e situacional, que permissão nos damos para expressar nossos erros, nossas falhas e nossas imperfeições?
Diferentemente da postura habitual de transformar encontros verdadeiros em amores de bolso, descartados mediante o menor vacilo e substituídos por qualquer promessa de lucro e satisfação momentânea, Bauman apresenta um fio de esperança para a humanidade quando nos convoca a refletir sobre em que consiste o verdadeiro encontro com o Outro.
O Outro é simplesmente quem pode encontrar em nós o que nós mesmos perdemos. O Outro é o maior convite de entrega profunda de nossas fragilidades. É a promessa de nos despir da caricatura criada para agradar em contraposição a inteireza de quem verdadeiramente somos, incluindo nossas vulnerabilidades, as porções de nós mesmos que nos envergonha, embora também nos constitua. O verdadeiro encontro entre dois seres acontece quando nos dispomos a nudez reveladora de nossa alma, quando nos abstemos das máscaras e dos disfarces que compuseram nosso estereótipo performático.