Demos início ao nosso primeiro encontro da Formação Internacional em Práticas Colaborativas e Dialógicas (ICCP) em Salvador, pelo Interfaci, sediado pelo Instituto Humanitas. Aproveitamos a ocasião para gravar e repassar para vocês parte de uma entrevista com nossa ilustre representante nacional e internacional dessa temática.
Conversar com Marilene Grandesso à respeito das práticas pós modernas terapêuticas é uma oportunidade preciosa de nos aproximar de conceitos ou sensibilidades, como ela prefere nomear, norteadoras dos diálogos generativos e construtivos que estabelecemos com nossos clientes. Caminhar de mãos dadas, ser hóspede temporário e respeitoso da vida do cliente, considerar a maestria do cliente em sua própria vida, reconhecer o seu grito de inconformismo, estar em presença radical e deixar que a outreidade dele se manifeste em nós, são algumas posturas filosóficas de vida que nos compõem atualmente, nesse cenário tão múltiplo e fértil, oras vertiginoso, oras imensamente esperançoso.
Nina Guimarães
Nina: Em meios Líquidos, nos considerando seres evaporados de nós mesmos, pensando na inconsistência e falta de solidez de tempos remotos, ao transpormos essa realidade para o setting, como construímos essa vinculação terapêutica, esses encontro genuíno e verdadeiro que estabelecemos com o nossos cliente?
Marilene: Essa é uma pergunta que nos convida a muitas reflexões. Nós vivemos os tempos líquidos em nossas vidas, como pessoas, não apenas como profissionais. Adentrar no território do outro é como estar em um rio caudaloso sem margens fixas, que flui na geografia dos terrenos por onde passamos, significa respeitar os contornos de enchentes e vazantes, considerando sempre o mar de possibilidades favorecido pelos Tempos Líquidos.
[…] O terapeuta moderno era um especialista em construir de pontes, com materiais definidos, resistentes e sólidos que davam sustentação para o fluxo de transporte que vai circular por ali. O terapeuta pós moderno é aquele cuja imagem análoga é a da Piscina de Lágrimas de Alice: fluindo e construindo o próprio contexto sustentador daquelas pessoas que estão imersas nessa piscina. No campo da terapia no contexto pós moderno, a primeira plataforma de sustentação é assumir a postura filosófica de colaboração, demonstrando uma coerência entre o que se é na vida e como nos comportamos no setting. Esta postura filosófica deve vir junto de uma ferramenta fundamental que é o diálogo. Não posso colaborar se não escuto. A escuta generosa consiste em ouvir para compreender o outro - é quando a outreidade do outro se manifesta em mim. A colaboração e o diálogo andam sempre juntos. […] Não podemos estar diante do cliente como observadores externos. O pensamentos sistêmico de segunda ordem já defendia a ideia de que somos sistemas observantes - tudo que é dito, é dito por um observador, que pode ser ele mesmo. Estar em diálogo é estar aberto para se deixar transformar.
Nina: De que maneira convidamos o cliente a estarmos de mãos dadas com ele nas práticas pós modernas? Como fazer esse convite “sedutor” para ele embarcar nessa aventura?
Marilene: Há sempre uma possibilidade construtiva ou esperançosa. Devemos criar uma relação onde a pessoa se sinta segura e aceita - genuíno respeito. Aquilo que a pessoa diz está sendo levado em consideração. Muitas famílias se encontram em campos minados e antagônicos. O respeito pela diversidade na construção de um espaço de conversação pode levar para um caminho diferente daquele onde um ganha e o outro perde. Um clima de confiança vai se estabelecendo e as pessoas passam a ser ouvidas. É importante escutarmos os sonhos e as expectativas daqueles que nos procuram (indivíduos, casais e famílias). Gosto de usar a metáfora da Harlene Anderson sobre terapeutas e clientes como hóspedes e anfitriões. Somos convidados pelos nossos clientes, os anfitriões, senhores de suas existências. Quando o cliente chega nós, terapeutas somos os anfitriões, recebemos eles com acolhimento, com a escuta aberta, não contrariar, e ao mesmo tempo, quando entramos nas histórias deles, devemos ser hóspedes respeitosos, comedidos nos espaços que eles vão abrindo para nos entrar os. Se nos convidam à sala, não vamos para o quarto. Isso envolve caminhar com, no ritmo e no deslocamento dos espaços cedidos.
Nina: Como devolver à dignidade “perdida”, temporariamente, pelo cliente, devolvendo-lhe o senso de agenciamento e, portanto, adentramos no território das práticas narrativas de re-autoria de Michael White?
O conceito do cuidado de si de Foucault nos convida a refletir que toda a condição de sofrimento implica um distanciamento entre as práticas de vida da pessoa e os seus valores preferidos para estar nesse mundo. Quando uma pessoa se sente humilhada por uma prática de vida, o que está ausente, mas implícito, é que alguns valores estão sendo desconsiderados, violados, abusados. Todo problema trás implícito um grito de inconformismo, como dizia Michael White. “Não esperava para a minha vida viver desta forma”. Quais os valores e as formas de vida a pessoa gostaria de ter? Todo ser humano é um vir a ser.
Nina: Qual o impacto de introduzir a dimensão futura na vida do cliente?
Marilene: Dentro do referencial das práticas narrativas, uma nova história deve ser conectada às histórias passadas e às histórias futuras. A dimensão de uma coerência e uma consistência com os nossos valores nos ajudam a evitar sofrimentos. Um norteador de existência, uma referência, seria estarmos coerentes com os nossos valores, e, ao mesmo tempo, considerando que em cada problema existe um grito de inconformismo, a dimensão futura é sempre uma busca de esperança. O olhar apreciativo do terapeuta busca por aquilo que não está sendo dito. Como diz Adalberto Barreto, podemos olhar o dedo que aponta ou as estrelas, muitas vezes o dedo que aponta é útil para irmos em direção às estrelas, mas quais as estrelas que estão nesse horizonte, nesse céu, que sirvam de nutriente para nossa esperança?